Entrevista com Enildo Luiz, professor Dr. do IFPE, especialista em água e saneamento básico
Entrevista com Enildo
Luiz, professor Dr. do IFPE, especialista em água e saneamento básico
O Coletivo Força Tururu
iniciou neste mês de fevereiro um projeto com o apoio da Habitat para
Humanidade Brasil sobre água e saneamento básico. Dentre tantos objetivos um deles é informar a
população sobre alguns perigos eminentes, como: a falta de água, o problema do
abastecimento, a péssima cobertura do saneamento básico, a privatização da Compesa
e como o povo pode se inserir nesta discussão.
Para tanto, fomos entrevistar
o Professor Dr. Enildo Luiz Gouveia, que leciona no IFPE e é especialista em
água e sabemanto básico. As informações importantes que ele nos deu nos
servirão de subsídio para nossos futuros trabalhos.
Coletivo Força Tururu: Queremos entender como funciona a questão do direito à água e saneamento
básico.
Enildo: A ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento) classifica essa região como a
Bacia do Atlântico Nordeste Ambiental, que
abrange toda essa
faixa litorânea. Essa bacia não tem uma
grande disponibilidade natural
de água. Quando
somamos a isso
o crescimento populacional, que se concentra principalmente no litoral, a demanda por água aumenta
significativamente. Além disso,
há um alto nível de poluição: dois
dos três rios mais
poluídos do Brasil
estão aqui, o Rio Capibaribe e o Rio
Ipojuca. Essa alta demanda impacta diretamente o abastecimento de água.
Coletivo Força Tururu:Por que falta tanta água?
Enildo: Existem vários fatores. Primeiro, há um problema de ordem
natural, já que a disponibilidade hídrica é baixa. Depois, temos um problema
estrutural: a infraestrutura de distribuição de água é antiga, cheia de vazamentos. A Compesa não trata toda a água como deveria. Outro problema é a captação irregular,
que impede
uma medição precisa do consumo real.
Um dado
interessante é que,
apesar de Pernambuco ter a menor
disponibilidade hídrica do Brasil, é o terceiro estado com maior perda de água. Ou seja, do total
produzido nas estações
de tratamento, quase 50% não
chega às casas das pessoas,
principalmente devido a vazamentos e captações irregulares. Como essas captações não são medidas corretamente, a Compesa sabe quanto produz,
mas não tem precisão no volume
que realmente chega
ao consumidor. Por
exemplo, se a Compesa
produz 100, mas só mede 50 na ponta final, fica evidente essa grande perda. Esse é um debate muito relevante.
Mas há outra questão
que se soma
à falta de água: o racismo ambiental. Fiz um estudo analisando o calendário de abastecimento de dois bairros: Jordão, uma área periférica,
e Boa Viagem, um bairro
nobre. Os dados
mostram que, em agosto, Boa Viagem ficou apenas cinco dias sem água, enquanto
o Jordão passou 21 dias sem abastecimento. E isso sem contar
as informações ocultas.
A Compesa divulga
que a água chegou, mas moradores relatam que, muitas
vezes, a água só aparece
às 22h e já desaparece pela manhã. Isso não é um problema tecnológico, porque há meios para levar água a qualquer parte da cidade.
O que explica essa diferença é a segregação socioespacial, que penaliza
as comunidades mais pobres. Não é novidade.
No caso das áreas de morro, a gravidade pode dificultar o abastecimento, mas não impede. Existe tecnologia para
levar água até
o topo do Morro da Conceição, por exemplo. O que acontece
é um conjunto de fatores
que vão desde problemas na captação até questões sociais,
que muitas vezes são negadas
pelas autoridades.
A informação que acabei de dar a vocês não
consta em documentos oficiais. É um dado
que coletei diretamente no site da Compesa, mas que eles não registram formalmente, pois
poderia gerar problemas para a empresa.
O estado de Pernambuco destina
46% da sua capacidade de investimento em obras
para políticas de água. Isso
inclui tanto ações
para períodos de estiagem quanto
para períodos de chuvas intensas. Há também uma questão econômica envolvida: o estado nega a instalação de certas indústrias em Pernambuco por falta de água, mas não
assume isso publicamente. Se essa informação chegasse
à opinião pública, as pessoas questionariam por que empresas
estão indo embora
ou deixando de se
instalar aqui.
Além disso,
há um mito de que basta perfurar um poço que se terá
água potável. Isso não é verdade. Nem toda água extraída do solo é própria para consumo, seja no litoral,
seja no interior. A luta não é apenas por garantir quantidade de água, mas também
qualidade, e depois
fazer com que ela chegue
de forma justa às casas
das pessoas.
Mas, como
vimos, há muitas
questões envolvidas nesse
processo.
Coletivo Força Tururu: Como se organizam os espaços para
cobrar e trazer
devolutivas sobre a gestão da água? São os conselhos de águas, não
é?
Enildo: São chamados comitês, Comitês
de Bacias. Eu represento o IFPE em um deles, o Metropolitano Sul. Esses
comitês existem em nível federal
também, como o do Rio São
Francisco, e contam
com a representação de três segmentos: o poder público,
os usuários e a sociedade civil.
Mas
é importante entender
quem são os "usuários". Não somos nós, os consumidores. Os usuários são
empresas públicas ou estatais que utilizam a água como insumo produtivo, como usinas de açúcar, indústrias de água mineral, Coca-Cola, cervejarias,
entre outras. Eles entram como usuários
porque a água é um insumo direto ou indireto
para a produção. Já os consumidores entram
na categoria de sociedade civil,
junto com universidades, institutos e ONGs.
Os comitês
possuem mandato de três anos e, em tese,
todas as discussões sobre a gestão da água deveriam
passar por eles. No entanto,
percebemos que muitas informações são retidas. Por isso, fazemos um trabalho de monitoramento constante.
Eu, por exemplo,
sou muito atento a qualquer notícia sobre água, mas ainda assim há muitas informações que não chegam
até mim. Agora,
imagine isso para alguém que não
tem esse nível de atenção. Há um problema
sério de acesso à informação e de participação.
Além disso,
há uma questão de empoderamento. No meu doutorado, pesquisei dois comitês
de bacia e percebi que a representação da sociedade civil é a mais frágil em termos de participação. Quando
essa representação vem de ONGs ou universidades, geralmente há um nível
de compreensão maior.
Mas também fazem
parte da sociedade
civil associações de pescadores, de aposentados, entre outras, que muitas vezes não compreendem as discussões por conta da linguagem técnica
utilizada.
Essas pessoas dependem de outros para
traduzir o que está sendo
debatido.
Se vocês observaram, há 15 dias
houve um problema
em uma audiência pública da Compesa. O governo está realizando audiências públicas, e, em uma delas, no Sertão,
uma professora se revoltou e disse: "Estou aqui há três horas, a plateia já esvaziou e vocês
só fazendo propaganda de governo!". Isso mostra como nem todo mundo
consegue acompanhar esse tipo de discussão.
Os comitês,
de modo geral,
não têm funcionado bem. No Brasil,
eles são muito deficitários em termos de participação. Isso acontece porque o trabalho é voluntário.
No Comitê Metropolitano Sul, por exemplo,
tínhamos 30 vagas,
mas conseguimos preencher apenas 21. Na última reunião,
só compareceram 15 pessoas. Outros comitês, como o do Rio Capibaribe e do Ipojuca,
também enfrentam problemas similares de participação e
compreensão.
A falta de informação é preocupante. Se você perguntar para alguém "O que é a água para você?", a resposta será:
"Água é tudo, é vida!". Mas precisamos ir além desse discurso e trazer a discussão para a prática.
Como cuidamos da água? Isso vai muito além de economizar no banho. Há debates muito maiores que estão passando despercebidos pela sociedade.
Aqui no IFPE, realizamos anualmente o Dia da Água, além de projetos e pesquisas de extensão sobre
o tema. Mas ainda não é suficiente. O problema da participação é grande.
Por exemplo, na região Metropolitana Norte, temos nove
municípios, mas apenas
três enviaram representantes para o comitê. Como um município que depende de água não participa desses
espaços? O pessoal
fica indignado porque
os usuários, como a Coca- Cola, estão sempre presentes
nas reuniões, defendendo seus interesses. A Compesa
também participa, entrando como usuária, já que é uma autarquia estadual.
Coletivo Força Tururu: Com
relação ao saneamento básico, quais são
os principais problemas?
Enildo: Na Região Metropolitana do Recife, considerando os 14 municípios, temos uma média de aproximadamente 50% de cobertura de coleta e tratamento de esgoto.
Ontem, eu estava finalizando um arquivo para um evento em setembro e vi que
Paulista, por exemplo,
tem apenas 47% de coleta de esgoto e um índice baixo de
tratamento.
O saneamento básico
está diretamente ligado à saúde
pública e à poluição. Um dos
meus alunos está desenvolvendo um TCC sobre
balneabilidade das praias,
e esse é um tema fundamental. Em Paulista e Recife, quase
nunca as praias
estão próprias para banho.
Esses dados são divulgados semanalmente no site da CPRH. No geral, é difícil encontrar uma praia própria. O litoral norte do estado consegue ser ainda pior que o litoral sul.
Há algumas praias
menos poluídas no sul, como
Candeias e Barra
de Jangada, mas Olinda
e Paulista enfrentam
sérios problemas.
Isso é preocupante porque a praia é um ponto turístico e, muitas vezes, o único espaço de lazer
acessível para a população mais
pobre. As pessoas
estão indo para praias que não
têm condições de serem usadas
nem mesmo para contato indireto, como pisar na areia contaminada. A nossa sorte, por assim dizer, é que a principal contaminação vem de coliformes fecais, oriundos de esgotos não
tratados que vêm
de hotéis, residências e indústrias. O organismo humano, em parte,
consegue combater essa
contaminação, outra parte é eliminada pelo
sal do mar,
e outra pode
causar problemas de saúde,
desde coceiras na pele até infecções intestinais.
A cobertura de saneamento básico
envolve três pilares
principais: acesso à água
potável, coleta e tratamento de esgoto e gestão de resíduos sólidos. O que vemos, na prática, é que grande
parte do esgoto
é lançado in natura nos rios ou tratado de maneira precária em fossas
sépticas, que são soluções caseiras,
onde se cava um
buraco e faz a vedação
com tijolos. Além
disso, a coleta
de lixo também
precisa ser melhor estruturada.
Se não avançarmos nessas
questões, continuaremos enfrentando problemas de saúde e
degradação ambiental. É preciso que a sociedade
se envolva mais nesses debates para cobrar políticas públicas
eficientes.
Coletivo Força Tururu: Você mencionou antes sobre monitorar Boa Viagem e Jordão. Você concorda que as populações com maior poder
aquisitivo têm mais privilégio no acesso à água hoje em
dia?
Enildo: Sem dúvidas. O problema também
é geográfico. Todos os bairros
nobres de Recife estão
em áreas planas,
o que facilita o acesso à água. Rosarinho é plano,
Afogados é plano, Espinheiro é plano. Então,
pode-se alegar que é mais fácil chegar água nesses locais. Quando
não chega, essas áreas têm condições de cavar poços, até mesmo regularizados. Há um vídeo
que eu mostro
nas aulas, de uns 10 anos atrás, que fala sobre a proibição de furar poços
na área de Boa Viagem,
onde está ficando como uma tábua de pirulito, porque
os prédios e condomínios estão
furando poços. E a gente não tem água. Não é só superficial, também não temos água subterrânea. Na faixa litorânea, há um pouco
mais de disponibilidade, mas também não é tudo isso.
Então, é natural que as pessoas, se não têm água em casa e não podem pagar uma análise de qualidade, façam o poço.
Coletivo Força Tururu: Nas
comunidades, sempre se fura poço
assim. E, como você mencionou sobre a "tábua de pirulito", existe
o risco de afundar o solo?
Enildo: Sim,
não existe espaço
vazio. Há uma
pressão da água
no solo e, se esse
solo for rebaixado, ele afunda. Como é uma área litorânea, há o risco de contaminação da água do mar, que chamamos de intrusão marinha.
Ao invés de água doce e potável, temos água salobra.
Coletivo Força Tururu: É verdade que se a água cair na terra, ela infiltra e se torna filtrada?
Enildo: Depende da área. Onde há solo exposto, a infiltração pode acontecer, mas a cidade está tomada de concreto e asfalto. Estamos
começando a discutir, pela primeira vez no IF, sobre a APA de Aldeia. Por que é importante preservar essa área? Não é só por causa das árvores, mas porque a área de Aldeia é uma das recargas dos rios, como o Beberibe. A água precisa
infiltrar ali, pois
o concreto não
permite essa infiltração. E, quando há aterro, ele dificulta esse processo. O problema é que, onde
você só tira água do solo e não permite
que ela se recarregue, vai faltar.
Coletivo Força Tururu: O
que é balneabilidade?:
Balneabilidade é o conjunto de fatores que
define a qualidade
da água para fins de recreação e contato primário, ou seja, para um contato
direto e prolongado, onde há possibilidade de ingerir quantidades consideráveis de água.
Coletivo Força Tururu: Em relação
à balneabilidade das praias que você está estudando,
especialmente em Paulista,
estamos observando uma grande expansão
de condomínios luxuosos, principalmente na área litorânea. Já podemos prever um impacto nisso?
Enildo: Com certeza. Como não há infraestrutura de coleta e saneamento adequados,
uma grande parte do esgoto vai diretamente para as praias, mas mais afastado da linha de costa,
onde é chamado de "sumidor". Um caso emblemático que presenciei foi em
Itamaracá, no Forte Orange, onde o Rio Timbó, que vem do Forte Orange, exala um fedor absurdo.
Ali, não há muitas casas,
mas o próprio forte traz
o esgoto e o lixo.
Não dava nem para ficar em um barzinho, o cheiro de coco e urina era insuportável.
No site da CPRH, é possível verificar as praias próprias e impróprias para banho. Eles fazem análises
semanais para saber
a qualidade da água.
Coletivo Força Tururu: Existe algum risco iminente de privatização da COMPESA?
Enildo: O termo que o governo
usa é "concessão". Há uma grande disputa
sobre isso. O modelo
foi implantado no Brasil de forma errada. No Rio de Janeiro e em Alagoas, por exemplo,
o preço da água aumentou, mas o serviço não melhorou. E, no mundo, como na França e na Inglaterra, após privatizarem, voltaram atrás depois de 10 anos, porque
não é algo lucrativo
de imediato para a iniciativa privada e o investimento é muito alto.
A água é um direito humano, e, independentemente de lucros ou prejuízos, ela deve ser garantida
para todos. Mas a iniciativa privada não trabalha com essa lógica. A crítica à proposta da COMPESA é que, o que está sendo concedido
é a distribuição, que é a
parte mais simples. Se você olhar hoje, as obras da COMPESA
estão todas terceirizadas. Quando
há um pico de falta
de água, como
ocorreu recentemente por falta de chuva, a empresa de distribuição diz que o problema não é com ela, mas com
a COMPESA,
que administra o tratamento. E quando a água chega sem qualidade, quem é o responsável? O transtorno fica
com o governo, e a distribuição, que é mais simples, fica com a empresa privada. Eu estou atrás desse documento, porque ainda
não tive acesso
a ele, mas é algo que precisa
ser analisado com mais cuidado.
Coletivo Força Tururu: O que você recomenda levar para nossa área de atuação e transmitir para a comunidade
de uma forma acessível?
Enildo: Sempre há coisas
importantes a dizer, mas como vocês têm uma boa relação
com
a comunidade, é importante reforçar a ideia de que a água não vem só da torneira.
Precisamos falar de onde ela vem, da questão da qualidade e tudo mais.
Até hoje, quando perguntamos, ninguém sabe realmente o que é a água
que chega até
eles.
Então, é interessante aprender a comunicar isso
de maneira que
as pessoas entendam de onde vem a água, além da torneira.
Coletivo
Força Tururu: Como seria um projeto
para tornar a água própria
para banho?:
O acesso ao
saneamento, coleta e tratamento de esgoto antes
mesmo de chegar
ao rio. A balneabilidade também afeta a vida marinha, como crustáceos, que podem nascer
menores ou em menor quantidade.
Os animais se adaptam à poluição ou se extinguem. O esgoto aumenta
a demanda bioquímica
de oxigênio, consumindo o oxigênio da água e prejudicando a vida marinha,
como os peixes. Eles podem morrer ou sua quantidade diminui.
Comentários
Postar um comentário